sexta-feira, 15 de julho de 2016

14 - EGOCRACIA (PARTE 2)


Andava naquele mundo escuro e novo , sem respostas prontas, sem racionalizações,apenas andava. O medo do desconhecido percorria pelas entranhas do seu ser.  Rivotril sentia que daquele momento em diante ele nunca mais seria o mesmo,nunca mais seria aquilo que ele imaginava ser...


Do outro lado do espelho a bela cidade nova estava mais poderosa como nunca,o grande ego reinava absoluto. Aquela nova cidade havia sido batizada recentemente por uma‘’votação popular’’, onde cada pessoa ia até o palácio do grande ego, sentava em seu colo,era enrabada por ele e depois ouvia o nome que o grande ego havia escolhido para a cidade. Logo após esse ritual,a pessoa tinha que agradecer e sorrir pela escolha do nome,feita democraticamente pelo grande ego.
O nome escolhido na votação democrática era aripiprazolândia, um nome alucinante com certeza.
Em outro grande momento da bela e nova cidade,o grande ego decidiu de maneira democrática novamente que ele iria vestir os moradores da cidade com roupas de cãezinhos de madame, obrigando à todos  a caminharem de quatro com uma coleira no pescoço. Depois do passeio,sendo conduzidos pelo grande ego,cada morador tinha que latir e lamber a mão do seu querido dono e amado líder,em sinal de respeito e alegria por ele ter tido essa grande idéia para a cidade.
Sua última e nova invenção era a de cobrir a Aripiprazolândia com uma cúpula, protegendo a cidade dos outros humanos restantes daquele mundo. Estes humanos eram aqueles que ainda estavam tomados pelo vírus que destruiu o velho mundo,transformando a todos em bestas assassinas. O grande ego resolveu fazer uma cúpula gigante feita com lágrimas,vômito,vidro,plástico bolha,dentaduras,fraldas sujas,camisinhas usadas,cera de ouvido, sangue menstrual,mamadeiras e chupetas. Uma grande proteção,sem dúvida!!

Enquanto isso,Rivotril seguia sua jornada naquela dimensão atrás do espelho. Ele andava e olhava nas pequenas passagens que ele encontrava pelo caminho. Cada uma dava em um banheiro,sala ,quarto ou em qualquer lugar em que houvesse um espelho. Em cada portal,Rivortil via como era a realidade de cada pessoa e como estava a realidade dela do outro lado simultaneamente,naquela dimensão paralela ao nosso chamado mundo real. Na primeira janela,ele viu um garoto sentado e sua cama,arrancando os cabelos de sua cabeça e comendo-os,num ritual de sofrimento expresso em cada gesto repetitivo,em cada gesto ansioso. O garoto engolia os cabelos,engolia também fios de tecido que guardava em seus bolsos e pedaços de algodão usados,roubados da lixeira de um hospital próximo dali. Rivotril olhou para trás,no mundo onde ele estava,viu o mesmo garoto com asas douradas,flutuando naquele lugar,ao lado de fadas,gnomos e um dragão vermelho,se divertindo naquela fantasia , enquanto sofria do outro lado do espelho com suas angústias do mundo ‘’real’’.

Na outra janela, em nossa realidade, Rivotril viu um rapaz sofrendo em seu estado catatônico,alucinando em sua esquizofrenia assim diagnosticada. Enquanto o rapaz permanecia imóvel em seu quarto,sentado em sua cadeira, sua cama estava repleta de cadáveres dilacerados,lençóis sujos de sangue,alguns corpos estavam pendurados por ganchos no teto de seu quarto. Os cadáveres estavam de ponta cabeça,presos pelos pés em ganchos de aço. O sangue escorria de suas bocas e de seus narizes,seus corpos estavam nus e sujos. Uma velha com a pele pálida , com manchas esverdeadas no rosto e nas mãos, por estar em estado de decomposição visível, sorria para o garoto em pé,próximo da cama onde os corpos repousavam naquela cena asquerosa. Ela não tinha olhos,dentes pútridos,vestido velho e mofado,mãos magras,dedos finos e pontiagudos. Ela sorria de forma diabólica para o pobre garoto em estado catatônico. Uma mariposa enorme estava pousada nas costas do garoto, batendo suas asas de cor marrom, com pontos negros e com desenhos que lembravam dois olhos grandes de uma coruja, formando um mimetismo sombrio. Do outra lado , no mundo do espelho, Rivotril via o mesmo rapaz dançando orgasticamente enquanto cantava uma canção prateada, com cores graves,médias e agudas,saindo de sua boca,como numa cachoeira de arco íris. Ele simplesmente dançava e cantava aquela música...

Depois de ver a alucinação do rapaz no mundo que ele chamava de real, Rivotril olhou no espelho à sua frente,onde havia outro portal para outra vida. Lá , ele viu sua mãe , em seu quarto,comendo ratos e baratas, tomando um belo suco de moscas verdes. Ela estava com uma corda amarrada em seu pescoço,estava se preparando para o seu suicídio. Desenhou um crucifixo em sua testa com uma faca,limpou o ranho que escorria de suas narinas velhas e subiu na cadeira . Estava pronta para o fim. No outro lado do espelho, Rivotril podia ver que naquele mundo sua mãe era uma pintora que dançava com as cores de sua arte,ela pulava em seus quadros,se tornando a sua própria criação,nadando nos rios de cores e formas de suas obras. Completamente diferente daquela pessoa doente que Rivotril conhecia e que tentava se matar do outro lado do portal. A cada janela, a cada espelho, a cada vida que Rivortil observava naquele mundo, mais confuso e assustado ele ficava,não compreendia mais o que acontecia com ele. Mas compreendia que naquele mundo ele podia ver por aquelas janelas,pelos espelhos,como as pessoas sofriam em segredo. Poderosos,políticos,religiosos,ricos,amigos. Todos se escondiam em seus mundos particulares,se escondiam de si mesmos em seus silêncios mortais,em suas próprias prisões sado-masoquistas.

Ao caminhar,ele resolveu olhar para o próximo portal. Naquele espelho,ele viu uma bela garota, com uma seringa em seu braço,caída no chão de sua casa,com seu corpo magro. Do lado onde ele estava,no mundo por trás dos espelhos, a garota vinha em sua direção,com um olhar belo e profundo. Para a surpresa de Rivotril que imaginava estar em um pesadelo longo, um diálogo se iniciou:

- Olá ,  aqui eu me chamo Discordiana,e eu nem quero mais me lembrar do meu antigo nome. E o seu,como é?



- Eu me chamo Rivotril,ou me chamava,não sei . Onde estamos?

-  Estamos num mundo paralelo,eu acho,talvez seja o limbo,o céu ou o inferno,sei lá. Sei que já estou aqui faz uns 15 minutos, desde que tomei um pico de heroína do outro lado, onde eu sou uma viciada. Também sou anoréxica lá, ganho minha grana me prostituindo e vendendo drogas para crianças em frente a uma escola , vendo veneno de rato para idosos em asilos para ajudá-los a morrer em paz , sabe como é a velhice. Ah! Também ganho a vida fazendo rinha de anões em um circo perto de onde moro. E você?

- Hum,vivia com meus pais, mais nada. Minha vida lá não era tão interessante quanto a sua. Diga-me,como você descobriu que aqui nesse lugar seu nome é discordiana?

- Simples,basta você olhar para dentro de si mesmo e encontrar o seu verdadeiro sorriso,sua alma,sua essência.

-Simples?

- Sim, aqui é possível sonhar. Mas você terá que criar um ritual de magia próprio,só seu. Invente,crie algo,use sua imaginação. Aqui você pode...

 Foi ai que Rivotril se concentrou, tentou buscar sua essência,se concentrou com muita força nas palavras de Discordiana. Desenhou um pentagrama em volta de si com sua própria urina. Em determinado momento,sua barriga começou a doer, seu corpo liberou um peido estrondoso,extremamente barulhento e longo, muito fedido também. Foi ai então que o verdadeiro sorriso,a verdadeira essência, a alma de Rivotril saiu e se fez presente. Seu gás fétido tomou a forma de um corpo,esse formato era a silhueta do corpo de Rivotril. Nesse instante corpo antigo de Rivotril,o que tinha liberado o peido,caiu vazio no chão como uma bexiga murcha. O gás havia se tornado sólido,dando forma a um novo corpo que sorria feliz,estava alegre ,como nunca antes vivenciado por ele. Gritava bem alto: ‘’ Meu nome é Jodoraw, Jodoraw é meu verdadeiro nome,esse é o meu verdadeiro sorriso,esse sou eu.’’

Discordiana sorria,estava contente por ver seu novo amigo encontrar a sua verdadeira essência,seu verdadeiro nome,o seu ser real, a sua essência,sua alma.

- Jodoraw não ligue para essa voz que fica falando da gente,que fica narrando o que vai acontecer e o que acontece, não ligue para ele. É apenas a voz do narrador,do escritor tosco que está ‘’criando’’ esta história,ele pensa que ele quem está inventando tudo  isso e que estamos saindo de sua mente , indo direto para as páginas de seu texto escroto. Mal ele sabe que nós já existimos,estamos existindo e ainda vamos existir,aqui,lá e em vários lugares possíveis.

Ma que merda está acontecendo? São 05: 55 da manhã,estou escrevendo esse texto em meu quarto e tive a sensação de que o texto estava vivo,conversando comigo. Será que estou ficando louco, depois de tantas noites sofrendo com insônia,paralisias noturnas e dias em constante estado depressivo? Talvez eu deva reconsiderar o diagnóstico de bipolar e tomar os remédios . Talvez não.Bom,voltando ao texto...

O recém nomeado Jodoraw  caminhava com Discordiana,após ter descoberto seu nome espiritual, ou cósmico como preferir o leitor. Até que avistaram um cérebro gigante,reclamando em voz baixa, resolveram se aproximar daquela massa cinzenta enorme...

- Quem é você , ou o que é você? Disse Discordiana , em voz alta.

- Mas que saco! Quem veio me atormentar aqui? Eu sou o grande cinza, sou o mais inteligente desse lugar , sou a soma da inteligência técnica dos humanos , sou a razão dos homens,sou o seu raciocínio lógico, represento os seus sistemas de regras e de crenças,sua moral,sou a soma dos seus valores e a sua lógica. Ou seja,sou o que de mais importante possuem os humanos que vivem do outro lado , atrás dos espelhos, no mundo real que eles foram programados para ver, em sua única e exclusiva visão racional e lógica das possíveis realidades. Eu sou a única e sagrada realidade deles, sou aquilo que os tornam tão sábios a ponto de destruírem a si próprios.

Jodoraw e Discordiana não sabiam que aquele ser enigmático era um ser perturbado,ele era o reflexo do excesso de razão e de regras e moral no mundo  ‘’real’’ dos humanos. Sofria com o extremismo de sua racionalidade burra e com uma montanha de moralidade que o tornava hipócrita,egocêntrico, paranóico e esquizóide, utilizando os termos técnicos do lado de cá, no mundo racional, onde eu e o leitor nos encontramos nesse exato momento. Ou que apenas fingimos acreditar que estamos aqui.
O grande cinza adorava assistir filmes eróticos cardiológicos. Uma modalidade de erotismo cinematográfico, disponível naquele mundo, onde dois corações pulsavam , roçavam um no outro,o ventrículo se contraindo ardentemente,até a explosão orgástica,jorrando sangue quente para todos os lados. O cara cinza adorava ver estes filmes secretamente,mas não contava pra ninguém,pois seu excesso de moralidade não permitia isso,ele era viciado em pornografia cardíaca,ele se julgava como um cardiófilo pervertido. Ele era extremamente paranóico quanto a isso,não aceitava seus desejos,pois sua moral não o permitia,ele sofria em silêncio. Claro que ele julgava todos aqueles que amavam assistir tais filmes,ele os condenava até a morte.
Ele vivia carrancudo,era ranzinza e sempre escondia seu ânimo depressivo por trás de sua fachada racional, de sábio cinza. Nunca iria assumir em sua vida que ele sentia desejos profundo pelos movimentos sensuais,pelas batidas pulsantes,pelo sangue quente,pelas formas eróticas de um coração.

Jodoraw o questionou , após ouvir a descrição do narrador desse texto sobre o Grande Cinza:

- Como você pode ser tão idiota nesse mundo? Pois pelo pouco tempo que estou aqui,eu entendi que desse lado as pessoas projetam seus lados positivos e criativos e do lado de lá, no mundo que chama de real,elas vivem aprisionadas em si mesmas e doentes com suas vidas mentirosas!

- ‘’Não é assim que as coisas funcionam por aqui garoto,não existe certo ou errado,não há leis ou regras no caos universal. Talvez nos estejamos vendo esse mundo nesse formato e com esses acontecimentos, graças ao cara que está criando esse texto e essa realidade ,talvez estejamos sob sua influência. Mas ele nem desconfia que ele também está sob nossa influência, sua vida também está se desenrolando do outro lado desse texto graças a nós,que estamos aqui no lado de cá.’’ Disse Discordiana.

- Não estou entendendo mais nada.

- Jodoraw,não há nada para se entender aqui,não caia nessa ilusão,você não está mais do outro lado. Se quiseres voltar pra lá,livre-se dessa ilusão, aquela que aprisiona àqueles que vivem do lado de lá. Veja,sou Discoridana,mas também sou a Deusa Éris ,e sou também a sua glândula pineal.

Nessa hora,Discordiana mudou de forma e se transformou numa grande pinha dourada,brilhante e poderosa. Disse para Jodoraw:

- Você está vendo essa realidade paralela e vivendo-a , graças `a expansão de sua glândula pineal,você está recebendo essas informações diretamente do grande caos universal,o grande espírito ao qual estamos inseridos,do qual fazemos parte. Ele é a grande mente cósmica,a grande idéia cósmica . Sua glândula pineal recebe as informações do grande caos, aquilo que você e todos os outros chamam de mente está fora do seu alcance, suas mentes estão além dos seus cérebros humanos . Seus cérebros humanos são receptáculos poderosos que se comunicam com a grande mente externa,o grande caos. Suas mentes se relacionam com seus cérebros. Suas personalidades únicas se forma através dessa relação que seus cérebros, seus receptáculos , mantêm com a mente cósmica e seus corações humanos,esse é o lar da sua verdadeira essência,de suas almas. Quando você quebra a relação da grande mente cósmica,com o coração,deixando o  espaço para o reino da razão cerebral,funcionando de maneira mecânica apenas,ignorando os chamados cósmicos e espirituais de sua essência,você rompe com o grande caos,torna-te um ser doente, alienado em seus túneis de realidade falseadas e se transforma na prisão e no túmulo de sua alma. Agora , você deve inocular a si mesmo de sua alma,para se livrar do controle mental imposto,saia do túnel de realidade onde você viveu por anos,não viva uma vida normal,pois ela nada mais é do que uma distração aborrecida que te fazem engolir até o fim da sua vida,até o dia de sua morte, distorcendo tudo aquilo que és...


A caixa de música toca,o fluído rosa flutua nas artérias estelares de Éris...
Um homem em chamas,um porco flutua, uma orquestra de vacas no pasto...
O lado escuro da lua...
Os cães latem na madrugada...
A glândula pineal vibra...
Pulsando com os universos...acordem!
Despertem do sono...
Um violino caótico toca...
Éris toma um chá feito com cogumelos , sementes de ipomeias, pétalas de hibisco vermelho e amarelo com pó de estrelas...

O escritor adormece...
Jodoraw iria despertar...
Lúcifer come o pedaço da maçã dourada...
Azrael, a ave negra da noite sem fim abrirá suas asas...










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